Fiat 128 Sport Coupe 1300. 1973-2005. Rust in Pieces... |
Esteve na família durante 32 anos e foi esse período de tempo que durou. Três décadas de automóvel e de memórias que contam histórias e períodos históricos de Portugal e das nossas ex-colónias. Nasceu em 1973, em Turim, na gigantesca fábrica da Fiat, vinha pintado em vermelho vivo numa cor chamada de rosso arancio e o interior era em vinil preto com elementos cromados tão típicos dos anos setenta. Teve matricula italiana, angolana e finalmente portuguesa. O BP-39-93 acabou os seus dias em 2005, numa prensa hidráulica, esmagado até ficar irreconhecível. Ainda não consegui comprar outro e falta-me a garagem mas enquanto isso não acontece visita-me em sonhos, o meu 128 Sport Coupe e outros iguais, em outras cores.
O Fiat substituiu um Austin Mini 1000 que foi moda nos anos sessenta mas depressa mostrou os seus limites por ser demasiado baixo, duro e acanhado para longas viagens. O 128 foi levantado no porto de Lisboa e estava ao sol escaldante há meses, os bancos ligeiramente esfarrapados pelo sol foram prontamente estofados e as garantias da época eram mínimas. Os construtores davam pouco espaço para reclamações e os concessionários eram simpáticos e prestáveis até receberem o cheque do cliente. A cor pedida era em branco mas na hora de levantar só haviam 128 vermelhos e o meu pai lá aceitou em troca de ter de esperar mais uns meses por um na cor desejada.
Foi de barco para Angola e em Luanda recebeu uma matrícula AAB que pouco foi usada. Entretanto nasceu em Dezembro o vosso escriba e usufruiu um Fiat novinho em folha que só iria conduzir dali por 20 anos! No ano seguinte a ditadura acabou em Abril e todos sabiam que as colónias iam ser entregues. O Portugal ultramarino, o império português estava a chegar ao fim.
O Fiat regressou de barco a Portugal e em 1976 recebeu uma matricula de "retornado", BP-39-93. Viveu mais cinco anos no Estoril e a salitre tomou conta do aço já de si fraco nos carros italianos desse período. Os russos são hoje em dia dados como culpados pela desgraça dos Fiat ferrugentos, dos "Alfa Seltzer" (Alfa Romeo que se desfaziam em contacto com água), os Lancia e os Ferrari que também ficavam corroídos em cinco ou seis anos, nem o Fiat 147 brasileiro se livrou da ferrugem. O aço barato e poroso vindo da Rússia havia sido uma negócio da China entre os italianos e a URSS em troca de tecnologia - os Lada eram praticamente iguais aos Fiat 124 e 125 italianos. Os russos ganharam o Lada e os italianos reputação de fabricarem carros ferrugentos.
Em 1979 transportou a família do Sul, do Estoril, para o Norte, para uma pequena vila (ainda era vila) chamada de Vila Nova de Famalicão, ali entre o Porto e Braga. A humidade e a pluviosidade do Minho não ajudaram o aço russo e no inicio dos anos oitenta foi totalmente pintado por um bate-chapas que errou a profissão e deveria ter sido sapateiro. Os pormenores cromados na grelha, as riscas desportivas na mala e as embaladeiras em preto mate foram passadas a vermelho. Estávamos na década de oitenta e o carro que até então era um dos melhores da rua começava a ficar ultrapassado, a ficar velho. O meu pai não o trocou e as ruas passavam a estar apinhadas de Fiat Uno, Renault 5 GTL, Opel Corsa, Citroen Visa e outros carros mais modernos com para-choques em plástico.
Anos setenta no seu melhor. Patilhas, calças boca-de-sino, óculos em massa, camisolas em gola alta justas ao corpo e estofos em vinil preto em carroçaria verde-sopa. Perfeito! |
A dada altura passei a ter uma relação amor-ódio com o Fiat. Ora me imaginava a conduzi-lo ora a atirá-lo de um barranco, ora a lavá-lo ora partir-lhe os vidros e os faróis com uma marreta, a atirar-lhe um farrapo com gasolina e vê-lo a arder, dar-lhe uns tiros de pistola...
Na escola secundária chamavam-lhe "a relíquia" e foi parte do pagamento do salário dos mecânicos da oficina Adão & Mesquita durante 19 anos. Eram tempos difíceis e não haviam créditos ao consumo como hoje em dia. O vizinho de cima trocou o 127 por um VW Golf, o barbeiro um Autobianchi A111 por um Citroen Visa, o do lado um Ford "ora bolas" também por um Visa e os meus tios e vizinhos o Dyane Nazaré por um Renault 19 novinho em folha. Todos trocavam de carro menos nós. O meu pai estava satisfeito com o Fiat para as voltinhas na cidade (tornou-se cidade entretanto) e os anos passaram sem nos apercebermos.
Outra década chegou, os anos 90. Tempos de saídas à noite em carros modernos com os amigos "betinhos" (há quem diga que se são de Famalicão não podem ser betinhos) e nas "bombas" da década. Os caixões com rodas como o Fiat Uno Turbo i.e, o VW Polo G-40, o Citroen AX GT... Foi nessa altura que algum alivio chegou. Os meus amigos mais próximos, os "cabeleiras" e o Pedro também tinham charutos se bem que com uma estrela no capot. Dois Mercedes 240D e um Citroen CX 2500D eram dos anos setenta como o meu Fiat! Certa vez tentamos cronometrar a aceleração 0-100 km/h do Mercedes 240 Diesel. Desistimos ao fim de 20 segundos...
Em 1994 após um calvário com instrutores e examinadores corruptos lá consegui a carta de condução. Finalmente fui devagarinho para a escola secundária ao volante do 128 do pai. Cada dia que passava ia acelerando um pouco mais, ganhando coragem e confiança. Uma noite, no regresso das aulas, decidi puxar o travão de mão na areia que ficava ao redor de uma rotunda lá ao pé de casa. Fiquei virado ao sentido contrário de onde vinha, voltei a repetir a façanha... O Fiat 128 Sport era afinal um carro desportivo feito para acelerar e fazer piões! Nesse dia abri a caixa de Pandora. Fui com ele para Espanha, enterrei-o na areia da praia pelo menos duas vezes, tive sexo dentro do 128 (tirava os bancos das calhas e deixava-os de fora para ter espaço!), bati num Datsun 1200 e numa Vespa, encostei o ponteiro nos 180 km/h na auto-estrada Porto-Famalicão, perdi-me no Marão e nas serras de Celorico de Bastos tendo de fazer corta-mato e finalmente convenci o meu pai a pintar o dito num derradeiro pseudo-restauro que durou um ano.
Em 1997 foi finalmente para a reforma para dar lugar a um anónimo, aborrecido, silencioso e confortável Renault Clio RT com bancos em veludo, vidros elétricos e chave com comando, um luxo a comparar com o equipamento espartano do 128 de duas décadas atrás. Recordo-me como se fosse hoje do último dia em que o conduzi na estrada nacional numa tarde de Verão. Ouvia o roncar do motor e do carburador duplo Weber e dizia à minha namorada de então - Um dia vou sentir falta de ouvir o som deste motor.
Atirado para as traseiras do prédio, coberto com um encerado de camião depressa se degradou. Desmontei-o no interior e nalgumas partes mais fáceis de retirar e guardei tudo na cave do prédio. Um dia uns gatunos refugiram-se dentro dele depois de terem assaltado um café e no dia seguinte o cheiro era nauseabundo, não lhe toquei mais. Entretanto fui para a Polónia fazer Erasmus, por lá apaixonei-me e dois anos depois emigrei. O Fiat ali ficou esquecido e esburacado até que decidimos dá-lo aos mecânicos que tão boas recordações tinham dele. Em 2005 pesquisava na Internet sobre o modelo 128 e encontrei num fórum um João de Alcobaça que, junto com o pai, restauravam um igual ao pormenor. Dei-lhes tudo o que tinha na cave e desde então que estou em contacto com eles. Ainda não vi ao vivo o 128 deles mas está combinada uma visita quando for a Portugal.
Perseguição policial em Varsóvia dos anos setenta entre um Fiat 128 Sport L e o Fiat 125P da "Milicja" (polícia) comunista. A série policial trata-se do O7 Zgłos Się (O7 responda).
De vez em quando conduzo-o. Tudo em sonhos mas como se fosse real. O toque do volante, a sensação de aceleração e mesmo o cheiro. O nosso cérebro não distingue os sonhos da realidade e assim vou matando saudades. Curiosamente o 128 Sport Coupe também foi vendido na Polónia comunista e já vi um em Łódź; quase que batia ao vê-lo mas ao menos ficou-me a esperança que a próxima matricula do meu 128 seja polaca...